A IMPUGNAÇÃO DOS VALORES DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS IMOBILIÁRIOS, NO ÂMBITO DO REGISTRO DE IMÓVEIS E SUAS IMPLICAÇÕES TRIBUTÁRIAS
Ao efetuar o juízo de qualificação do título, é dever do Registrador verificar se os valores dos imóveis declarados pelas partes e ainda se o valor venal atribuído pelo órgão fiscal competente para fins de imposto predial e territorial ou do imposto de transmissão estão em dissonância com o valor real de mercado.
Referida obrigação funda-se no fato de que a função pública desempenhada pelo Registrador é essencialmente fiscalizadora da autenticidade e da verdade que deve permear os atos translativos de direitos imobiliários, sob pena de o Estado estar consentindo em práticas ilegais que podem implicar sonegação tributária.
Isso porque sobre o valor declarado no negócio jurídico imobiliário incide a taxa do Fundo do Reaparelhamento da Justiça, emolumentos, impostos de transmissão [ITCMD, ITBI, laudêmio (bens da União: marinha ou acrescido)], imposto de renda (IR) e lucro imobiliário, e por tal razão, é importante que o mesmo seja razoável, para evitar que a União, o Estado, o Município e o Judiciário e, em última análise, a sociedade como um todo, sejam prejudicados, sendo o Registrador responsável pelo correto recolhimento dos tributos – art. 289 LRP e 505 CNCGJSC, além de possuir responsabilidade solidária, ex vi do art. 134, VI do CTN.
Assim, verificando o Registrador que o preço, o valor declarado ou valor venal atribuído ao imóvel não representam o seu valor real de mercado, encontram-se presentes os requisitos da impugnação.
A impugnação se constitui em eficaz instrumento de combate à “prática comum negocial” contrária ao direito e lesiva à sociedade, que se verifica costumeiramente no dia a dia dos registros imobiliários, que se caracteriza pela expressiva minoração da base de cálculo tributária, ao se deixar de declarar o valor real dos negócios jurídicos imobiliários.
O egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em recente julgamento proferido em 06/08/2020, no Processo n. 0001753-40.2012.8.24.0159, pelo eminente Des. LUIZ FELIPE SCHUCH explicita que “O princípio da boa-fé contratual exige dos contratantes comportamento ético antes, durante e após a celebração do contrato, seja entre si, perante terceiros ou com o Fisco, não se revelando aceitável invocar suposta ‘prática comum negocial’ contrária ao direito e lesiva à sociedade para se desvencilhar de obrigação validamente assumida (…)”.
A impugnação de valores, criada pela LC 156/97, teve seu procedimento estipulado pelo Provimento 14/99 da CGJSC, de autoria do Desembargador Francisco José Rodrigues de Oliveira Filho, então Corregedor-Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina.
Posteriormente, em 2010, houve a edição do Provimento 12/2010 da CGJSC, quando a impugnação passou contar com previsão no Código de Normas.
O Código de Normas em vigor dispõe a respeito, in verbis:
“Art. 502. Se o valor declarado pelo interessado e os indicadores mencionados no caput do art. 16 da Lei Complementar Estadual n. 156, de 15 de maio de 1997, estiverem em flagrante dissonância com o valor real ou de mercado do bem ou do negócio da época, serão adotadas as seguintes providências preliminares:
II – o oficial de registro de imóveis protocolizará o título apontado a registro e esclarecerá ao apresentante sobre a necessidade de declarar o valor real ou de mercado do bem ou do negócio.
(…)
- 2º Retificado o valor do bem ou do negócio, voluntariamente, de ofício ou por determinação do juiz competente, deve o delegatário exigir do interessado o recolhimento do valor integral ou complementar da taxa do FRJ, além do restante dos emolumentos.
- 4º Caso seja acolhida a recomendação mencionada no inciso II deste artigo, o oficial de registro de imóveis fará constar do corpo do registro o novo valor declarado do bem ou do negócio, para fins de cobrança de emolumentos e da taxa do FRJ, dispensada a impugnação judicial; se houver discordância, o oficial fica autorizado a impugnar o valor declarado.
- 7º Superado o teto, a vedação do § 6o deste artigo, não se aplica ao caso de haver flagrante discrepância entre o valor atribuído pelo Poder Público e o de avaliação real do bem ou negócio.
- 8º Dispensada a impugnação e sem prejuízo do processamento do ato solicitado, o delegatário, na hipótese do § 7º deste artigo, determinará o valor real do bem ou negócio.”
Por sua vez, a Lei Complementar Estadual n. 755/19, em vigor desde março de 2020, também disciplina acerca da necessidade de o Registrador fiscalizar o recolhimento de tributos e determinar a retificação de valores dos imóveis em flagrante dissonância com o valor de mercado. Veja-se:
“Art. 6° Os emolumentos serão calculados de acordo com esta Lei Complementar e as Tabelas constantes no Anexo Único.
- 2° Nos atos e serviços notariais e de registro com expressão econômica mensurável, deverá ser considerado o maior valor entre o declarado no negócio e o venal atribuído, para fins de cobrança de imposto predial e territorial ou de transmissão.
- 3° Se o valor declarado e o valor venal do bem estiverem em flagrante dissonância com o valor real ou de mercado, o delegatário recomendará a retificação desse valor.
- 4° Caso não seja realizada a retificação referida no § 3° deste artigo, o delegatário deverá impugná-lo.”
O Código de Normas que estabelece o procedimento da Impugnação de Valores, atualmente prevista na LCE 755/19 e aponta critério a ser utilizado pelo Registrador a fim de verificar essa flagrante dissonância: Se o valor (venal ou declarado pelas partes) não alcançar 70% (setenta por cento) da real avaliação do bem ou negócio (§ 2º do art. 504 do CNCGJSC), está caracterizada a necessidade da impugnação.
Para cumprimento da norma – saber a real avaliação do bem ou negócio – o Registrador deve utilizar como parâmetro o valor de imóveis situados nas proximidades já registrados na Serventia, podendo também realizar pesquisa mercadológica junto a imobiliárias locais, ou Tabelas da Fazenda Estadual ou de outro órgão público.
A respeito, o enunciado n. 01 da ANOREG-SC, editado no ano de 2012, assim estabelece:
“A impugnação de valores deve ser deflagrada quando os valores-base constantes dos títulos caracterizem discrepância a menor com a realidade do mercado imobiliário, atendendo aos seguintes critérios, dentre outros:
- Valor atualizado de registros anteriores do próprio imóvel ou de similares;
- Pesquisa de mercado; e
- Tabelas da Fazenda Estadual ou de outro órgão público.
Sugere-se a impugnação quando os valores constantes do título apresentado estiverem abaixo de 70% do valor de mercado.
Fica dispensada essa providência quando atingido o teto do Fundo de Reaparelhamento do Judiciário (FRJ) e dos emolumentos”.
Assim, comprovada a discrepância a menor de valores com a realidade do mercado imobiliário, pode o interessado declarar perante a Serventia (declaração assinada no balcão ou com firma reconhecida) ou por meio de retificação do próprio título, o valor real ou de mercado do bem ou do negócio ou acatar o valor sugerido pelo Registrador, recolhendo a diferença dos emolumentos e da taxa do Fundo do Reaparelhamento da Justiça.
Se houver discordância do interessado para com a retificação do valor do negócio, caberá então ao Registrador impugnar judicialmente o valor declarado, seguindo o seguinte procedimento previsto no Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça:
“Art. 503. Na hipótese de impugnação do valor declarado, deverá ser observado o seguinte procedimento:
I – o delegatário deduzirá pedido ao juiz dos registros públicos, com a indicação dos fatos e fundamentos respectivos, especialmente os critérios adotados para definição da base de cálculo;
II – deduzido o pedido, o delegatário cientificará o interessado com cópia da inicial e adverti-lo- á da possibilidade de apresentar resposta em juízo no prazo de 10 (dez) dias, a contar da notificação; e
III – cientificado o interessado, a petição inicial e o comprovante de notificação serão remetidos ao juízo.
Agora, resta saber se cabe também ao Registrador determinar a correção da base de cálculo dos tributos incidentes sobre o negócio ou fato jurídico a ser registrado e se a DOI (Declaração de Operações Imobiliárias) deve ser retificada, no caso de impugnação ou retificação do valor declarado.
O inciso XI do art. 30 da Lei n. 8.935/94 estabelece ser dever dos Oficiais de Registro, dentre outros, fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar, sob pena de, em assim não agindo, praticar infração disciplinar (art. 31, V) e sujeitar-se às penalidades que vão desde repreensão à perda da delegação (art. 32).
Já o art. 289 da Lei n. 6.015/73 vai mais adiante, ao afirmar que no exercício de suas funções, os oficiais de registro devem fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos, do laudêmio e dos impostos incidentes sobre os atos notariais e de registro.
Especificamente sobre o assunto, o Código de Normas da Corregedoria aponta que:
Art. 504. Retificada, por determinação do juiz competente, a base de cálculo, deve o delegatário cientificar, até o 5º (quinto) dia útil do mês subsequente à prática do ato:
I – o Ministério Público Federal, se o ato envolver o recolhimento do laudêmio; e II – o Ministério Público Estadual, se o ato envolver o recolhimento de impostos de transmissão.”
“Art. 505. Cumpre ao delegatário fiscalizar o recolhimento da taxa do FRJ, do laudêmio e dos impostos incidentes sobre atos notariais e de registro, vedada a percepção de valores destinados ao pagamento de tais tributos ou receita.
- 4º À exceção do valor da taxa do FRJ, não compete ao delegatário a fiscalização do montante exato devido a título de recolhimento de impostos, desde que não seja flagrantemente equivocado.”
Pela leitura dos dispositivos acima, chega-se à conclusão de que se no procedimento de impugnação judicial o juiz determinar a retificação da base de cálculo do negócio, cabe ao Registrador oficiar ao órgão do Ministário Público Federal (tributos federais) ou Estadual (tributos estaduais e municipais), para que tome as medidas necessárias para a apuração da evasão fiscal ocorrida. De outro lado, ainda que não se faça impugnação judicial, quando o Registrador perceber flagrante equívoco na valoração do imóvel objeto de trasmissão ou oneração (fato gerador do tributo) cabe ao Registrador exigir seja recolhida a diferença dos impostos incidentes.
A título de exemplo, tenho determinado a complementação de valores a serem recolhidos a título de imposto de transmissão e oficiado ao Município para cientificação e esclarecimentos, quando verifico que em ato anteriormente registrado na mesma matrícula (data anterior), o mesmo imóvel fora avaliado para fins fiscais em valor superior. Ou seja, quem hoje transmite o imóvel, quando o adquiriu pagou imposto sobre base de cálculo mais alta do que a que hoje consta do título, fato que não não é aceitável, nem razoável salvo se comprovada a desvalorização do imóvel.
Assim, em tais casos, entendo que deverá o interessado (comprador) recolher imposto sobre a diferença [apresentar a DITBI original com descrição do bem e comprovante de pagamento no original (valor, banco, data e autenticação bancária do pagamento)], ou caberá ao Município comprovar a exatidão da base de cálculo por ele utilizada, utilizando como fundamento os arts. 505, 802, I, 803, do CNCGJSC, art. 30, XI da Lei 8935/94 e art. 289 LRP.
Já especificamente quanto ao Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD [imposto Estadual devido por toda pessoa física ou jurídica que receber bens ou direitos como herança, diferença de partilha ou doação], há legislação específica no Estado de Santa Catarina e orientação da Exatoria Estadual no sentido de que em toda a retificação de valores ou impugnação realizada, para fins de recolhimento de emolumentos e FRJ, o Registrador determine, em nota de exigência, também a retificação da DIEF/ITCMD, e em não sendo retificada a base de cálculo tributária e complementado o valor de imposto pelo contribuinte, deve o Registrador comunicar o fato à exatoria, sob pena de caracterizar-se a solidariedade do Registrador, na referida responsabilidade tributária.
Isso porque o ITCMD deve ser calculado e declarado pelo próprio sujeito passivo, que fica obrigado a antecipar o seu pagamento, sem prévio exame da autoridade administrativa e a extinção do crédito tributário dependerá de homologação pela Fazenda Pública.
Neste sentido, dispõe a Lei Estadual nº 13.136, de 25 de novembro de 2004:
“Art. 8º O imposto será calculado pelo próprio sujeito passivo que fica obrigado a antecipar o seu pagamento, sem prévio exame da autoridade administrativa, sujeitando-se a extinção do crédito tributário a ulterior homologação pela Fazenda Pública. (NR)
- 2º As informações econômico-fiscais relativas ao imposto serão prestadas à Fazenda Pública pelo contribuinte, na forma prevista em regulamento. (NR)”.
A mesma Lei, estabelece em seu artigo 6º a responsabilidade solidária do Registrador de Imóveis pelo pagamento do tributo e demais acréscimos, nos seguintes termos:
“Art. 6º Respondem solidariamente pelo pagamento do tributo e demais acréscimos:
III – na hipótese de negligência ao disposto no art. 12:
- b) o titular do ofício de Registro de Imóveis em que seja efetuado o registro da escritura de inventário, partilha, separação e divórcio consensuais, doação, cessão, averbação, instituição ou extinção de direito real, da sentença de partilha ou de adjudicação de bens, ou do ato de entrega do legado;
Por tais razões, no ano de 2015, consultou-se a exatoria estadual acerca do procedimento a ser adotado no caso de Impugnação de Valores, tendo sido recebida resposta da auditoria, no seguinte sentido:
“(…) Ou ele (Registrador) convença o contribuinte a alterar a DIEF para o valor que ele exigiu para os emolumentos e o FRJ, ou se não conseguir, informe formalmente este fato a Fazenda Estadual, para as providências necessárias”; e continua: “PORTANTO: Se o Registrador exigir que o contribuinte altere o valor do bem, para efeito de base de cálculo, para fins de calcular o valor dos emolumentos e da FRJ, deve OBRIGATORIAMENTE, exigir o mesmo, em relação ao ITCMD. Não conseguindo, comunica formalmente o fato à Fazenda Estadual, sob pena de responsabilidade, conforme dispositivos legais abaixo. E resume: “Neste caso, o Registrador não vai brigar ou polemizar com o contribuinte. Ele apenas deve informar a Fazenda Estadual, por ofício, o fato ocorrido, apresentando cópia da escritura, nº da DIEF original não retificada, da matrícula do imóvel, e todos os dados adicionais que tiver do contribuinte” (Osni de Souza – Matrícula 209283-2 – Auditor Fiscal de Receitas Estaduais).
Em face de tal orientação, tenho adotado o seguinte entendimento quando verifico a inexatidão da base de cálculo utilizada pelo contribuinte quando do preenchimento da DIEF, ou seja, quando percebo o flagrante equívoco na valoração do imóvel objeto de transmissão: Exijo a retificação da DIEF/ITCMD e o recolhimento do imposto sobre a diferença; e, havendo discordância, realizo o ato registral, mas ato contínuo, tenho enviado Ofício à exatoria estadual, encaminhando a nota de exigências e documentos apresentados, nos seguintes moldes:
“A Sua Senhoria o Senhor
Gerente Regional
Secretaria de Estado da Fazenda
Rua Modesto Fernandes Vieira, 1 – 5º andar – Bairro Dom Bosco, Itajaí -SC
88303-396
Ofício nº
Porto Belo – SC, xx de xxxx de 2020
Ref.: Comunicação retificação DIEF/ITCMD
Senhor Gerente Regional,
Cumprimentando-o cordialmente, tendo em vista a consulta encaminhada a esta Serventia pelo Auditor Fiscal OSNI DE SOUZA, Matrícula nº 20983-2, via “e-mail”, encaminho, por dever de ofício, cópias dos documentos referentes a Escritura Pública de xxxx, onde consta o recolhimento do ITCMD abaixo do valor de mercado/venal do bem: DIEF nº xxxx, base de cálculo de R$ xxx, tendo esta Serventia impugnado o valor declarado para R$ xxxxx. Declarante: xxxx.
Assim, em cumprimento ao determinado na orientação recebida por “e-mail”, onde consta: “Neste caso, o Registrador não vai brigar ou polemizar com o contribuinte. Ele apenas deve informar a Fazenda Estadual, por ofício, o fato ocorrido, apresentando cópia da escritura, nº da DIEF original não retificada, da matrícula do imóvel, e todos os dados adicionais que tiver do contribuinte”, comunico o fato ocorrido e aguardo ulteriores determinações desse órgão fazendário.
Na oportunidade, renovo protestos de consideração e apreço.
Por fim, acerca da necessidade da retificação da DOI (Declaração de Operações Imobiliárias) no caso de retificação do valor do negócio, estabelece a circular n. 142/2009 da CGJ/SC:
Diante da redação do Ofício-Circular acima, resta claro que cabe ao Registrador efetuar a retificação da DOI, sempre que impugnar ou determinar a retificação dos valores de negócios ou fatos jurídicos, quando verificar flagrante equívoco na valoração do imóvel objeto de trasmissão ou oneração (base de cálculo de impostos de transmissão causa mortis, onerações ou transmissão gratuita inter vivos).
Destarte, verifica-se que o Procedimento da Impugnação de Valores é instrumento de grande valia a ser utilizado no dia a dia pelo Registrador, a fim de contribuir para o combate à “prática comum negocial“, que tem implicado em costumeira evasão fiscal, e com isso o “Registro de Imóveis“ converte-se em grande aliado da sociedade como um todo, já que somos todos credores de melhorias sócio-econômicas (saúde, educação, estrutura urbanística,etc.), que dependem da correta arrecadação tributária dos entes federados.
Franciny Beatriz Abreu
Registradora Pública
Comarca de Porto Belo-SC